segunda-feira, dezembro 06, 2010

E somos e ninguém sabe.

Ninguém desconfia das dores e do olhar de pessimismo que o palhaço do sinaleiro tem sobre a humanidade. Olhando para garota em seu curto vestido, sua pose de modelo e seu cabelo quase dourado ninguém imagina o quanto seu coração está partido. Ninguém sabe dos desejos da mulher sentada na terceira fileira de bancos da igreja central. Ninguém escuta o choro do homem recém-separado ao ver-se sozinho. Ninguém suspeita que a amante do governador não usa lenços, óculos escuros e saltos altos como em filmes antigos. Ninguém sente o cheiro da mulher traída a fazer fantasias com o jardineiro do prédio. Ninguém imagina que a prostituta sentada na esquina tem sonhos lindos e grandes. Ninguém sonha que a mulher que está agora diante do altar pensa em outra mulher e em como poderia ter sido mais alegre a troca de alianças, mesmo diante do olhar de espanto dos convidados. Que o padeiro queria na verdade ser cantor, mas que por causa da velhice precoce desistiu de qualquer coisa. Ninguém desconfia do desespero da mulher que afoga as mágoas em copos de cervejas baratas ou daquela que faz sexo com quem aparecer pra se sentir valorizada. E da garota que quer mudar de país pra conhecer coisas novas mas que estará sempre na superfície dela mesma. Ninguém nota que aquele que só teme a Deus cegamente não conhece a verdadeira compaixão. Ninguém sabe que o ator esqueceu o texto e começou a falar da própria vida. Do homem de cinquenta anos que se masturba pensando na vizinha de dezessete. Do escritor mal sucedido com sua meia dúzia de frases sobre um amor perdido há muito tempo. Ninguém suspeita que no meio da festa o pensamento viaja através do tempo e vai parar exatamente naquela pessoa dada por esquecida ou se segura em um copo de whisky. Ninguém ouve a maldade de falsos amigos que não sabem como ser de verdade. Da boneca jogada no lixo e trocada por meninos que escutam música alta no meio de um ônibus lotado. Ninguém suspeita que a Charlotte foi igualmente e perdidamente apaixonada por Werther, mas que não teve coragem de assumir. Ninguém nota que o grisalho solitário encontra companhia apenas na fumaça de seus cigarros mentolados. Que o policial broxou pela décima vez seguida. Ninguém sabe que o jovem fugiu de casa não por rebeldia, mas porque não tinha mais condições de sofrer. E que a moça de brincos de pérolas tentou por várias vezes se apaixonar pelo mesmo homem e não conseguiu. Ninguém vê o pai ao olhar sua filhinha que tem tendências totalmente opostas àquelas que ele sonhou pra ela. Que Julieta não sonhava com alguém como Romeu antes de conhece-lo. Do menino que é apaixonado pelo colega de curso. Ninguém suspeita das mentiras que saem da boca da magricela na cantina do colégio. E da professora que se insinua ao diretor que por sua vez é investigado por assassinato. Ninguém desconfia do medo absurdo que ela tem ao imaginar o futuro. Ninguém sabe que o piloto do avião que viaja sempre do sul para o norte é casado com um piloto que viaja do leste para o oeste. Ninguém percebe que o amor não tem nada a ver com aquela coisa que a sociedade inventou. Que o contador sonha em sair de malas na costas pra nunca mais voltar. Que muita coisa é pura imaginação. Ninguém suspeita que existem tantos sentimentos contraditórios dentro de uma pessoa só. Ninguém desconfia dos fracassos e das vitórias. Ninguém sabe que dentro de corpos vivem gente de verdade, ninguém pára pra pensar regularmente que somos feitos de um grande misto de escolhas, erros, vontades, sonhos perdidos-achados e doloridas-coloridas fases.
Ninguém suspeita que podemos ser aquilo que somos.

Este texto foi escrito por Aninha, dona do blog Coração de gás.

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Pessoas que abriram o coração.