Ninguém  desconfia das dores e do olhar de pessimismo que o palhaço do sinaleiro  tem sobre a humanidade. Olhando para garota em seu curto vestido, sua  pose de modelo e seu cabelo quase dourado ninguém imagina o quanto seu  coração está partido. Ninguém sabe dos desejos da mulher sentada na  terceira fileira de bancos da igreja central. Ninguém escuta o choro do  homem recém-separado  ao ver-se sozinho. Ninguém suspeita que a amante do governador não usa  lenços, óculos escuros e saltos altos como em filmes antigos. Ninguém  sente o cheiro da mulher traída  a fazer fantasias com o jardineiro do prédio. Ninguém imagina que a  prostituta sentada na esquina tem sonhos lindos e grandes. Ninguém sonha  que a mulher que está agora diante do altar pensa em outra mulher e em  como poderia ter sido mais alegre a troca de alianças, mesmo diante do  olhar de espanto dos convidados. Que o padeiro queria na verdade ser  cantor, mas que por causa da velhice precoce desistiu de qualquer coisa.  Ninguém desconfia do desespero da mulher que afoga as mágoas em copos  de cervejas baratas ou daquela que faz sexo com quem aparecer pra se  sentir valorizada. E da garota que quer mudar de país pra conhecer  coisas novas mas que estará sempre na superfície dela mesma. Ninguém nota que aquele que só teme a Deus cegamente não conhece a verdadeira compaixão. Ninguém sabe que o ator esqueceu o texto e começou a falar da própria vida. Do homem de cinquenta anos que se masturba pensando na vizinha de dezessete.  Do escritor mal sucedido com sua meia dúzia de frases sobre um amor  perdido há muito tempo. Ninguém suspeita que no meio da festa o  pensamento viaja através do tempo e vai parar exatamente  naquela pessoa dada por esquecida ou se segura em um copo de whisky.  Ninguém ouve a maldade de falsos amigos que não sabem como ser de  verdade. Da boneca jogada no lixo e trocada por meninos que escutam  música alta no meio de um ônibus lotado. Ninguém suspeita que a Charlotte foi igualmente e perdidamente apaixonada por Werther,  mas que não teve coragem de assumir. Ninguém nota que o grisalho  solitário encontra companhia apenas na fumaça de seus cigarros mentolados. Que o policial broxou  pela décima vez seguida. Ninguém sabe que o jovem fugiu de casa não por  rebeldia, mas porque não tinha mais condições de sofrer. E que a moça  de brincos de pérolas  tentou por várias vezes se apaixonar pelo mesmo homem e não conseguiu.  Ninguém vê o pai ao olhar sua filhinha que tem tendências totalmente  opostas àquelas que ele sonhou pra ela. Que Julieta não sonhava com  alguém como Romeu antes de conhece-lo. Do menino que é apaixonado pelo  colega de curso. Ninguém suspeita das mentiras que saem da boca da  magricela na cantina do colégio. E da professora que se insinua ao diretor  que por sua vez é investigado por assassinato. Ninguém desconfia do  medo absurdo que ela tem ao imaginar o futuro. Ninguém sabe que o piloto  do avião que viaja sempre do sul para o norte é casado com um piloto  que viaja do leste para o oeste. Ninguém percebe que o amor não tem nada  a ver com aquela coisa que a sociedade inventou. Que o contador sonha  em sair de malas na costas pra nunca mais voltar. Que muita coisa é pura  imaginação. Ninguém suspeita que existem tantos sentimentos contraditórios  dentro de uma pessoa só. Ninguém desconfia dos fracassos e das  vitórias. Ninguém sabe que dentro de corpos vivem gente de verdade,  ninguém pára pra pensar regularmente que somos feitos de um grande misto  de escolhas, erros, vontades, sonhos perdidos-achados e doloridas-coloridas fases. 
Ninguém suspeita que podemos ser aquilo que somos.
Este texto foi escrito por Aninha, dona do blog Coração de gás.
Este texto foi escrito por Aninha, dona do blog Coração de gás.

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Pessoas que abriram o coração.